Tenho uma satisfação genuÃna em trabalhar apenas com pacientes mulheres. Todo trabalho que realizamos no outro, invariavelmente realizamos em nós mesmos. Minha base religiosa ortodoxa, ao contrário da católica romana tem uma devoção mariana. Na prática material não representa que as mulheres tenham muito poder, mas na espiritual a essência do feminino é no mÃnimo reverenciada. Costumo conceber Eva, como a representante mitológica do feminino, humanizada. Não tivesse ela diabolicamente sussurrado no ouvido de Adão que ele existia, ele estaria até hoje como um bobão inconsciente, nu no paraÃso. A psique surgiu pela ousadia de uma figura feminina.
Como Psicóloga Junguiana, levo em consideração o inconsciente coletivo, o familiar, e não sei se um dia assimilarei ao certo o que veio antes: a ausência da minha mãe desde meu primeiro ano despertou o meu olhar para o feminino ou eu vim reequilibrar o meu feminino através da ausência da minha mãe?
No meu caso, havia dores mais entranhadas, mas foi quando meu marido faleceu que algo começou a se movimentar com mais vigor. Na volta para casa, já que amigos acolheram meus filhos, ainda pequenos, para brincar e se distrair, deitei-me sozinha no tapete da sala e assim me senti: sozinha, vazia, incapaz de permanecer em pé. Meu pai entrou por alguma porta, pegou-me chorando copiosamente, olhando para o teto. Na tentativa de realmente me ajudar disse: levanta, você está sozinha e tem dois filhos pequenos para criar, você tem que ser forte. Como eu estava, fiquei, mas as lágrimas foram engolidas. Nada falei. SensÃvel, como a maioria dos homens, passou o recado e saiu. Meu próximo pensamento foi sobre minha mãe: “onde você está? Você precisa voltar para me salvar. Só uma mulher teria as palavras para preencher esse corpo com uma alma, mesmo uma que foi embora deixando uma filha com seu pai". Paradoxalmente a admiro, e isso também me forma, tem que ter muita coragem para abandonar tudo e ir contra tudo aquilo que esperam que uma mulher cumpra. Então. veio o próximo pensamento, sem um pouco de dó, jogou na minha cara sua objetividade: "você vai ter que salvar a si mesma". E depois de mais de quatro horas quando o teto já estava escuro eu tive a primeira luz.
Se as pessoas ouvissem nossos pensamentos deduziriam que são desconexos, esquisitos, estúpidos porque o próximo que me recordo foi: “amanhã eu preciso comprar um vestido e caro”. Foi deitada naquele tapete, com dor, e em silêncio que minha mente construiu um plano para minha própria salvação. Eu compro vestidos caros, caros obviamente para cada condição que eu me encontre, porque o valor deles me cria pressão para eu entregar tudo que eu posso na conquista do meu objetivo. E vestidos que eu possa pagar, ainda que com esforço, mesmo que o plano não se materialize. São usados quando a materialização se efetiva. Materialização não é somente de coisas, objetos, é também de situações, comportamentos, sentimentos.
Meu primeiro vestido era para ser usado no dia da abertura do meu primeiro consultório, pois até então eu trabalhava à s vezes na minha profissão, no consultório de uma amiga, e quase sempre no negócio do meu marido. Esse perÃodo foi quando eu mais me aprofundei na Psicologia, me especializei, pesquisei, escrevi artigos, viajei para cursos em dezenas de lugares. Já, nosso negócio, eu não sabia como ficaria, após seu falecimento, já que tinham sócios e inventário e tudo fica congelado até negociações, e esse incômodo chega para potencializar a perda e pode facilmente transformar-se na segunda maior dor do mundo. Hoje me agradeço tanto por ter aproveitado aquele perÃodo para me ampliar e não apenas me amparar numa vida cômoda.
Decidi que o consultório seria num hospital, pelo fluxo de pessoas, e porque naquela época não tinha rede social para divulgação, era o antigo boca a boca, um texto no jornal. Um médico, sócio do hospital me recebeu e comunicou-me que não havia salas de psicologia para sublocação. Faz tão pouco tempo, mas como nesses vinte anos a psicologia se propagou.” Que incrÃvel. Que lindo”. Eu não saà da sala, apenas fiquei quieta pensando no que eu poderia argumentar e não queria me colocar como uma vÃtima que acabara de perder o marido e precisava sustentar dois filhos, nada disso comentei. Eu queria um argumento inteligente: “eu sei que vocês não precisam de mim, mas eu preciso de vocês. Me proponha quantos pacientes eu tenho que buscar fora para mostrar que eu posso ser vantajosa para vocês também.” Eu estava negociando tão bem e de repente, me saiu isso: “eu acabei de comprar um vestido, e ele é muito caro, e eu preciso pagar a fatura em menos de um mês, então eu preciso desse consultório.” Ele começou a rir e pediu para eu voltar em uma semana, que levaria o assunto para reunião. No meu retorno, ele me apresentou um consultório já pronto, tinha um divã de veludo bege, as cadeiras eram amarelas também em veludo, tudo de muito bom gosto. Usei o vestido no outro dia porque ele já havia me encaminhado paciente.
Há duas semanas meu pai adoeceu e esteve internado e fui para aquela cidade. Como atualmente atendo on-line, perguntei se tinham alguma sala para me sublocar para aquele dia e eles gentilmente me cederam. Os médicos de vinte anos atrás batiam na minha porta, brincando: “quantos vestidos você comprou agora, que teve que voltar aqui?” Tenho muito orgulho de ter aberto as portas da psicologia naquele hospital.
Foram dezenas de vestidos nesses vinte anos. Um deles foi quando comprei meu próprio espaço e então eu quem sublocava salas para outros profissionais. Meus vestidos especiais não são somente para questões profissionais, embora sim, no teste das deusas gregas sou mais Atenas, a filha que mais trabalha, nascida diretamente da cabeça do próprio pai. Meus vestidos são para quando todos os sonhos se realizam. Cada formatura dos meus filhos, do fundamental à faculdade, para as palestras que fiz e me divulgaram, para aquelas viagens especiais, para vitórias significativas. Para vida amorosa comprei apenas dois, até este momento. E quando falamos de relações amorosas lembremos que o outro não pode ser manipulado. Manipulamos situações, coisas, elementos; portanto, esses você compra, faz sua parte e fica na torcida. Só usei um deles.
Vestidos especiais são usados por mim para manipular minha própria mente para eu conseguir o que determino. Não faz parte do método para a manifestação que passo à minhas pacientes, é um "plus" que funciona para mim. Cada um pode encontrar esse estÃmulo maior de acordo com sua personalidade. Um fato importante. Esses vestidos são doados depois de lavados, porque eles são como que magnetizados para aquele momento. Eu não posso usá-los novamente porque são meses ou anos preparando-os na minha mente para estarem prontos para determinada situação e essa situação repetidas vezes passaria a mensagem de que não saà do lugar. Na verdade, me preparando, visualizando-me com eles para determinado momento, assim como fazem os médicos para controlar todas as variáveis numa cirurgia, os atletas que treinam na sua mente antes de uma jogada. Eu levo meses ou anos para uma jogada, tudo no mais santo silêncio. Às vezes me pego pensando: vocês nem imaginam o que está sendo construÃdo dentro de mim.
Apenas um adendo, minha filha que é uma Atenas com Afrodite, me fala que quando tem algum problema com um relacionamento ou algo de estudo ou trabalho, ela encara a pessoa no silêncio, quase que com indiferença e pensa: "quer me humilhar, é sua hora, porque você não sabe o que eu estou construindo dentro de mim". Ironia ou não, minha filha é estilista.
Logicamente nem todo vestido foi usado, mesmo depois de meses sendo programados. Cerca de 15% a 20% foram doados sem uso. Considero que falhei em alguma coisa e não que era para ser assim. Não quis tanto, não fiz tanto, não me concentrei, não me dediquei, não acreditei. Considero os que não se manifestam, fracasso. Gostaria de manifestar tudo, isso possibilitaria a escolha, mesmo que fosse para olhar e dizer: “não era isso, não quero mais.” Uso esses fracassos para rememorar a minha humanidade. Ainda que eu fizesse tudo que sei, não sei nada, não controlo todas as variáveis. Mas, sou a pessoa mais esmerada que conheço tentando controlar as possÃveis. Se para conseguir algo eu preciso acordar e correr à s quatro da manhã por um ano, com certeza vou falhar todo dia, mas vou tentar todo dia.
Estou com um vestido aqui do meu lado que preciso doar e não foi usado. Fracassei neste. É fruto de uma imagem mental do ano passado, mais especificamente realizada na metade do ano. Estou com dorzinha porque alguns vestidos ficam perfeitos no corpo e alguns são de desejos mais importantes. Mas é isso, para quem já viveu o luto da perda total, a perda parcial pode não significar o fim. Como diriam nossas avós: “vão-se os aneis, ficam os dedos”.
Meu marido havia me proporcionado muita coisa, oferecido atos amabilÃssimos, Demonstrou amor numa intensidade que à s vezes também me perturbava. Mas, ainda que ele existisse e as flores de todo sábado continuassem chegando, ele nunca teria conseguido me salvar como eu me salvei, com apenas alguns desafios, um pouco de pressão e bons vestidos.
Luciana Sereniski
CRP 12/06912
OBS: Uma paciente, após ler o texto, me perguntou algo que acho interessante esclarecer. Se eu acho que o médico se abriu para a possibilidade de levar o assunto para a reunião, pela vontade que eu demonstrei em trabalhar ou porque eu falei do vestido e uma conta a pagar. Ou, se ele pode ter se interessado por mim.
R: Porque a terapia é algo que tem média e longa duração? Porque não podemos apontar uma direção, ter uma análise apurada, entender algo com o que está na superfÃcie. São muitas variáveis que influenciam uma questão, e causam os movimentos. Uma das minhas formações foi em Psicologia Comportamental. Na faculdade fiz experimentações com apenas um rato, e inclusive não nos demos bem porque ele me mordeu já no inÃcio. Já na pós, manipulei comportamentos com muitos ratos. Essas experimentações nos ensinam a manipular a mente para desenvolver comportamentos desejados.
A psicologia trabalha com duas frentes. Uma, é acompanhar o desenvolvimento natural do paciente, sem interferir, para que ele chegue no Self, o Si Mesmo, a instância psÃquica da totalidade, constatando por ele mesmo sua luz e sua sombra. Outra, é interferir no processo quando a mente pega atalhos errôneos. Então, manipulamos a mente para enfrentar a sombra, para redirecionar desvios de comportamento que sejam prejudiciais e também manipular a mente para manifestar uma realidade desejada. Lembremos que essa realidade desejada pode não ser a melhor escolha, mas se for reprimida transformar-se-á em sombra, que vai perturbar em silêncio. Saber o que falar, para quem falar, como responder, como pedir são aprendizados que um psicólogo treina arduamente. E, os ratos são as cobaias. Quando dizemos algo para influenciar, sabemos que aquilo pode trazer determinado comportamento do outro, no outro, porque já treinamos muitas variáveis nos ratinhos. Algumas são para mudança imediata, algumas coisas ditas ou as não ditas são para plantar sementes. Portanto, no mÃnimo temos ideia do resultado, embora sem conhecer bem uma pessoa, desconhecemos variáveis especÃficas. Focamos no arquétipo que está a nossa frente.
Os machos alfas precisam de fêmeas mais frágeis, adoecidas, com sede, para na gaiola cederem sua vez na alimentação, doar sua água. Quando a fêmea é muito saudável eles disputam de igual para igual, não conseguem levar em consideração a diferença de gênero. Se eu tivesse dito que estava fragilizada pela perda do meu marido e etc... eu teria mais chances naquele momento, porque é como se eu precisasse sobreviver, e aquela pessoa tivesse me devolvido a vida como um Deus. Mas, se após eu me reerguer eu ousasse me sentir de igual para igual eu seria retaliada, como se eu não tivesse sido grata. Quando alguém te salva para sobrevivência você precisa se manter submissa.
Eu iniciei levemente submissa, mostrando que precisava deles, mas me mostrei forte dizendo que também poderia contribuir. Então fiz o meio-termo. Essa fala foi consciente. A fala do vestido veio inconscientemente, mas o aprendizado de manipulação eu tenho automatizado, então minha mente inconsciente pode ter avaliado que para aquela figura à minha frente eu teria que me fragilizar um pouco mais, afinal era um Senhor, quase um avô, que minha mente deve ter interpretado que seria mais conservador, portanto ele seria sensÃvel a uma fragilidade maior. (Mas a percepção inconsciente é objetiva e se percebeu algo e manipulou foi para manter a vida). Mas pagar um vestido não seria sobreviver, então eu poderia gradualmente ir me colocando lado a lado, sem ser retaliada, mas, gradualmente, e sem perder a gratidão.
Para que eu receba eu preciso me abrir, isso significa que preciso ter vazios, não ser, não saber, não conseguir algumas coisas. Por outro lado, para receber eu preciso ser vista como alguém que também sabe dar, porque isso equilibra as relações. Ninguém te dá nada, sem receber na medida.
Quando nos dão para sobrevivência é como se não esperassem nada de nós, exceto o poder "divino", que vão sentir por nos devolverem a vida, e nesse caso vão querer nos manter no chão.
Fechando, eu fiz o meio-termo, o meio-termo que é levemente diferenciado para cada um. No caso de alguém mais conservador o precisar dele precisa no inÃcio ficar mais evidente. Respondi consciente e inconsciente aquela figura especÃfica. Ele me viu como uma neta praticamente. Com um homem mais jovem eu poderia ter equilibrado mais. Mas, se eu não tivesse demonstrado muita vontade e não tivesse um bom currÃculo, mesmo que eu tentasse manipular uma situação, não conseguiria.
A manipulação não se fecha em si mesma. Ainda que se saiba como realizar, ela só acontece quando outras variáveis são levadas em consideração, como a inteligência apresentada, a imagem e força fÃsica, o status, os vÃnculos desta pessoa. Essas variáveis podem ajudar ou atrapalhar o processo de manipulação. Mas, ter a inteligência, a boa imagem fÃsica, o status, os vÃnculos sem saber manipular também não funciona. É aquela pessoa muitas vezes linda, inteligente, sem carisma algum, sem sal. Nossa "graça", nossa "beleza", nosso "poder de atração" não está em ter as coisas, mas em como manipulamos as coisas que temos.
Essa pergunta poderia se alongar por páginas e páginas porque manipular não é enganar e sim saber usar os ingredientes para realizar cada feito, assim como manipulamos os ingredientes para um prato apetitoso, um aroma inebriante, manipulamos comportamentos para transitar no mundo com menos pedras no caminho.
Luciana Sereniski
CRP 12/0912