A Sombra
11:15A Sombra: O Self Rejeitado
Com um ou dois anos de idade temos o que se pode visualizar como uma personalidade de 360°. A energia irradia de todas as partes de nosso corpo e de todas as partes da nossa psique. Uma criança correndo é um globo vivo de energia. Tínhamos uma bola de energia, tínhamos sim. Mas um dia percebemos que nossos pais não gostavam de determinadas partes dessa bola. Diziam coisas como: "Não consegue ficar quietinha um pouco?" ou "Não é bonito tentar matar seu irmão". Atrás de nós existe um saco invisível, e aquelas nossas partes das quais nossos pais não gostam, nós — para conservar o amor deles — colocamos no saco. Mais ou menos na época em que entramos na escola esse saco já é bem grande. Então é a vez dos professores: "Boas crianças não ficam com raiva por causa de bobagens." Assim, pegamos nossa raiva e pomos no saco. Na ocasião em que meu irmão e eu tínhamos doze anos, e morávamos em Madison, Minnesota, éramos conhecidos como "os ótimos irmãos Bly". Nossos sacos já estavam com mais de um quilômetro cada um.
Depois praticamos muito arremesso no saco na época do colegial. Dessa vez não são mais os adultos malvados que nos pressionam, mas as pessoas da nossa idade. A paranoia do aluno com relação aos adultos pode então ser mal dirigida. Nesse tempo eu mentia automaticamente para tentar ser mais parecido com os jogadores de basquete. Qualquer parte minha que fosse um pouquinho mais lenta ia para o saco.
Hoje são os meus filhos que passam por isso. Vi minhas filhas, que são mais velhas, viverem a mesma coisa. Desanimado, constatei quantas coisas punham no saco mas não havia nada que eu ou a mãe delas pudéssemos fazer. Freqüentemente, minhas filhas pareciam estar decidindo por si assuntos de beleza e moda, escapando às referências coletivas, e sofriam tanto pressões das outras moças como dos homens.
Afirmo, por isso, que tendo começado com um globo inteiro de energia o jovem de 20 anos encontra-se com apenas uma fatia dele. Vamos imaginar que um homem tem uma fatia fininha de sobra — o resto está todo no saco — e que ele encontra uma mulher, vamos supor que os dois estão com 24 anos. A fatia dela é fina, elegante. Unem-se numa cerimônia e essa união das duas fatias chama-se casamento. Mesmo juntos, os dois não fazem uma pessoa inteira! Quando o saco está grande, o casamento implica solidão na lua-de-mel, por essa mesma razão. Claro que todos mentem acerca disso. "Como foi a sua lua-de-mel?" "Maravilhosa! E a sua?"
Cada cultura enche o saco com conteúdos diferentes. Na cultura cristã, a sexualidade em geral vai para dentro do saco e, com ela, uma grande parte da espontaneidade. Por outro lado, Marie-Louise von Franz nos adverte para não termos ilusões românticas a respeito das culturas primitivas, presumindo que não têm sacos de qualquer espécie. Ela diz que, na realidade, elas têm sim, um pouco diferentes e às vezes até maiores. Lá dentro colocam a individualidade, ou a inventividade. O que os antropólogos chamam de "participação mística", ou de "mente comunitária misteriosa", é uma expressão adorável mas pode significar que os membros da tribo sabem todos com exatidão a mesma coisa e que ninguém sabe nada diferente. É possível que os sacos de todos os seres humanos sejam mais ou menos do mesmo tamanho.
Passamos nossa vida até os 20 anos, aproximadamente, decidindo que partes pôr no saco, e o resto de nossos dias será dedicado a tirá-las de novo para fora. Às vezes parece impossível resgatá-las, como se o saco estivesse lacrado. Vamos supor que ele permaneça lacrado: o que acontece? Uma excelente história do século XIX tem uma ideia a respeito disso. Certa noite, Robert Louis Stevenson acordou e contou à esposa um fragmento do sonho que havia acabado de ter. Ela insistiu para que ele o anotasse e ele o fez. Tomou-se depois "Dr. Jekyll e Mr. Hyde". Na nossa cultura idealista, o lado bom da personalidade se torna cada vez melhor. O homem ocidental pode ser um médico liberal, por exemplo, sempre pensando no bem dos outros. Do ponto de vista moral e ético ele é uma pessoa maravilhosa. Mas a substância que está no saco assume uma personalidade própria, que não pode ser ignorada. A história diz que a substância trancada dentro do saco aparece um dia em outra parte da cidade. A substância no saco sente raiva e, quando você a vê, ela tem a forma de um macaco e se movimenta como tal.
A história diz então que quando pomos uma parte nossa dentro do saco ela regride. Ela volta a um estado bárbaro. Vamos supor que um rapaz lacra o seu saco quando está com 20 anos e depois espera mais quinze ou vinte anos para tornar a abri-lo. O que encontrará? É uma pena, mas ali achará a sexualidade, a insubordinação, a impulsividade, a raiva, a liberdade, todas regredidas. Não que sejam apenas de temperamento primitivo, mostram-se também hostis à pessoa que abre o saco. O homem que o desata aos 45 anos ou a mulher que abre seu saco sentem um medo justificado. Ela olha rapidamente e vê a sombra de um macaco deslizando pela parede de um beco. Qualquer pessoa que visse isso sentiria medo.
Patrícia Berry
A Sombra: Agente Provocador
Sempre achei a sombra a mais difícil das experiências psicológicas, embora suponha-se que, por ser a primeira, seja a mais fácil. A sombra não é difícil de se conceber como conceito. A ideia está baseada num modelo de opostos e na noção de Jung de que o funcionamento consciente é unilateral. Aquilo que, no plano teórico, é fácil de se entender, na prática, quando se trata das vivências, fica muito mais difícil. Para mim, parte dessa dificuldade tinha que ver, pensei, com minha geração dos anos 50 e 60, para as quais as identificações conscientes eram incertas já que a própria consciência era incerta. A geração para a qual Jung se dirigia parecia mais sólida, ainda um tanto vitoriaria em suas convicções. Para ela, parecia existir uma clara distinção entre o que o ego abrangia e a sombra desfazia. Havia luz e escuridão. Havia realmente vários Dr. Jekyll e Mr. Hyde.
Na minha geração, estávamos todos "na estrada", com Kerouac, cantando os lamentos com Elvis, Fats Domino, Little Richard. As virtudes da ciência eram louvadas (havia uma corrida espacial, e o LSD era um composto químico). Éramos idealistas (fazíamos passeatas em prol da integração racial e queimávamos as requisições de alistamento militar).
Hoje, toda essa confusa emotividade ("beatnik", científica, idealista) faz da sombra uma entidade complicada. Primeiro, não existe uma sombra mas, sim, muitas (assim como não existe um único ponto de vista consciente mas muitos, todos igualmente sérios, dependendo do estado de ânimo e do momento). As estruturas da percepção consciente se modificam. Aquilo que é relativamente consciente num momento não o é mais no momento seguinte. Da mesma forma como a fonte de luz muda, como a posição ou a situação se modificam (conforme uma luz diferente é lançada sobre as coisas), também a sombra vagueia.
A sombra deve ameaçar a consciência, e nada em geral é de fato ameaçador. Só nos atinge com impiedade o que é específico e inesperado. O específico é íntimo (próximo, pequeno, imediato), e o inesperado é simplesmente o próprio inconsciente. Assim, a sombra surge em momentos específicos e inesperados — quando estou desnudando minha alma e também manipulando para granjear simpatia, ou quando estou sentindo amor e um afeto sincero pelo meu analisando, para depois perceber que a necessidade é minha e que eu também estou amarrando o analisando a mim; ou quando prevejo que um casamento está para acabar, e percebo que minha previsão está desempenhando um certo papel nessa tragédia, armando antecipadamente o esquema de seu desenrolar; ou, no âmbito dos pensamentos, quando estou falando intelectualmente e de repente dou-me conta de estar perdida em minhas próprias abstrações.
Talvez exista um certo prazer masoquista na conscientização mobilizada pela sombra. Deve ser porque gostamos desse sofrimento, senão por que agir assim? Uma parte de nós deve exultar de alegria quando o chão foge debaixo de nossos pés. É possível que esse gozo doloroso da certeza perdida seja um prazer estético, como o deleite que sentimos diante de um bom texto de teatro ou de romance que transtorna, que abala a forma como vemos a vida e que, através da tensão que cria, nos força a adotar uma outra perspectiva.
Então chegamos à tensão. A conscientização advinda pela sombra procede por tensões e, mais uma vez, constatamos que, quanto mais específico for o nosso foco nas nuanças da diferença, maior a tensão. É o cor-de-rosa que colide com o vermelho, porque são muito próximos. O azul não contrasta tanto com o vermelho; ele antes o compensa ou o equilibra, bloqueando a tensão íntima que destaca a forma específica de conscientização desencadeada pela sombra.
Como exemplo dessas tensões, lembro-me de uma mulher com quem trabalho em análise e que tem uma vida noturna selvagemente libidinosa, irracional, "liberada", e uma vida diurna racional, ponderada, responsável. Esses opostos, o vermelho e o azul, permanecem lado a lado, equilibrando-se mutuamente, de uma tal forma que, por seu pouco movimento, dificulta o trabalho psíquico. Embora os lados azul e vermelho da sua personalidade sejam opostos em larga escala, não são sombras eficazes. Não criam tensão, nem dariam um quadro interessante de se pintar. Uma tensão psicologicamente funcional, uma tensão mobilizadora seria entre suas noções sentimentais suavemente róseas acerca do amor e suas noites vermelhas, ardentes e fogosas. Esse rosa e esse vermelho entrariam em tensão.
Essa ênfase estética sobre o particular é como a insistência que Jung faz sobre o individual: o singular contra aquilo que o coletivo impinge.
Edward C. Whitmont
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