O que está por trás de um sintoma tão limitante?
Vou responder e esmiuçar um pouco, deixando claro que não tenho a intenção de gerar culpa, nem responsabilizar ninguém, apenas trazer à consciência comportamentos que estamos reproduzindo há muito tempo, alguns talvez, centenas e centenas de anos.
Já citei em outros textos que nosso primeiro amor, seja para meninos ou meninas é nossa mãe ou a figura que a representa. Ela tem praticamente a missão de, no nosso primeiro ano de vida proporcionar a sensação de segurança e retirar o medo. Exemplificando: quando sentimos necessidade de nos alimentar e ela nos nutre, sentimos essa segurança; quando acordamos assustados, ou temos cólicas e ela nos acolhe, ela retira nosso medo. É ela quem realiza esse feito, porque até por volta dos nossos 7 meses não temos consciência da nossa individualidade. Para nós, bebês, ela e nós somos uma só pessoa. O mundo para nós é representado por ela, portanto o que ela sente, como ela enxerga o mundo é como nós passamos a nos referenciar. Uma mãe que está psicologicamente fragilizada em algum aspecto, provavelmente não será capaz de passar a segurança e retirar o medo de um novo Ser que está se desenvolvendo. E qual mulher está apta a repassar a ideia de um mundo amável para seu filho, depois de termos sido usurpadas do nosso poder? Depois de terem inferiorizado nossas principais habilidades, características? Portanto, homens e mulheres terminam seu primeiro ano de vida com defasagem emocional, o que vai influenciar seu desenvolvimento mental. Essa primeira fase chamamos de Matriarcal.
Passamos para a segunda, após nosso primeiro ano, a fase Patriarcal, levando conosco fardos de questões mal resolvidas. Essa fase serve para nos impulsionar para o mundo. Aquele mesmo mundo que sentimos quando sentimos nossa mãe. E nessa fase é aguardado que sejamos espertos, atentos, que busquemos nossos objetivos, começando por um pequeno objeto que nos apontam, quando engatinhamos e posteriormente damos nossos primeiros passos. E essa fase é muito valorizada. Quando tocamos o objeto, as pessoas à nossa volta comemoram como se esse fosse nosso objetivo de vida: buscar objetos, alcançar “coisinhas” do mundo externo.
A questão é que nesse período nos diferenciam, em homens e mulheres. Até então éramos apenas bebês, e então começa nossa saga, a de reproduzir comportamentos. Homens, mesmo não tendo sido retirado o medo e proporcionado segurança, devem dominar o mundo, “vencer na vida”. Mulheres, mesmo não tendo sido retirado o medo e proporcionado segurança, devem proporcionar segurança e retirar o medo dos seus filhos. Como? Se nem sabemos que comportamentos realizar e que sensação é essa? E no momento atual também é cobrado que as mulheres “vençam na vida”.
Descartando todas as outras consequências, devido à nossa incapacidade de proporcionar a outro Ser a nutrição emocional (matriarcal) e mental (patriarcal), para seu bom desenvolvimento, foquemos na baixa autoestima. Herdamos essa condição. Ela não é tão diferente no Ser que está ao nosso lado, falando melhor do que nós, ganhando mais dinheiro, estando mais perto de construir uma família que beire o que consideramos saudável. De forma alguma. Todos crescemos e estamos propagando em parte essa condição: um certo "desvalor", uma visão equivocada da nossa força, da verdade do que somos, a mesma que usamos para julgar os nossos atos e sentimentos, e de todos os outros. Mas alguns se saem melhor sim, mesmo crescendo em meio a erros propagados. Sabem por quê?
Quando alguém investe tempo, afeto e dinheiro em você, você acredita que tem valor. Mas a quantidade de dinheiro é a que tem a menor importância, porque ela tem relação com a condição da família em que se nasce. Não é ter a condição para estudar no melhor colégio, ter a melhor roupa, mas que, ainda que o dinheiro seja pouco, o filho seja visto como um “bom investimento”, usando um termo rude para dar clareza. E como “bom investimento” se pensa com seriedade na sua alimentação, na sua educação, na sua saúde. Exemplificando: mesmo precisando o colocar num colégio que se sabe que não é bom, busca ajudá-lo nos estudos, valoriza o que o filho mostra que aprendeu, compra um livro. Não pode levar ao dentista, mas foca na prevenção, como escovar ou cobrar a escovação.
Estamos saturados de filhos que ganham muito dinheiro dos pais, que estão no melhor colégio, podem comprar a melhor roupa e a autoestima é o verdadeiro caos, pois a autoestima não está, no que concerne ao dinheiro, relacionado a quantidade, mas a forma que é entregue ou empregado.
Quis explicitar a questão financeira para deixar mais nítido que quantidade em termos financeiros tem valor muito reduzido quando falamos em autoestima. A pessoa com maior autoestima que conheci na minha vida era funcionária de uma casa, chegava de bicicleta e chinelo, exalava uma alegria de viver, e conseguiu parar a propagação de comportamentos inadequados ao bom desenvolvimento, mesmo com uma mãe que a rejeitou, pois quando nasceu o seu próprio filho, um filho programado, já tinha condições de um plano de saúde, uma alimentação melhor, e ainda que não pudesse pagar um colégio, estudava com o filho toda lição de casa. A melhora na condição financeira desta família aconteceu gradualmente e com honestidade, proporcionando vivências mais complexas, como a delícia de uma viagem ou a compra de um bem, mas a autoestima, que proporciona uma alegria imensa, já era de uma beleza que muitos viajantes de Dubai não tem a mínima ideia, portanto se enrolam em tecidos caros e usam armaduras com rodas, para pensar e fazer outros pensar, que eles têm valor.
Finalizando, podemos concluir que sim é necessário gradualmente sermos mulheres mais aptas a proporcionar segurança e retirar o medo dos nossos filhos, e quando eles forem para o mundo, pararmos de os colocar em caixinhas de comportamento de “homens e mulheres”, que precisam alcançar apenas objetos externos e que isso é poder. E este poder mantém a vida e nos faz mais felizes, é o que aprendemos e ensinamos. Manter a vida é a função básica da mente, ela sempre vai nos direcionar para tal, porque essa vida dentro de um corpo pode nos autodesenvolver. E autodesenvolvimento tem relação direta com o valor que você acredita Ser, pois Ter é meio e não fim.
Por isso, se tem algo que você pode e deve realizar, mesmo que não tenham feito isso com você é doar dentro das suas possibilidades para que outro se desenvolva; ame seu filho ou seu próximo, foque em desenvolver afetos saudáveis; e dedique tempo às relações que verdadeiramente podem contribuir com seu amor próprio. Esse é caminho da melhora da sua autoestima. Mas vamos além, esse é o caminho para se chegar a um mundo melhor, o mundo real, que se tomada consciência pode ser hoje, mesmo que o restante da humanidade insista em continuar não aderindo ao amor próprio.
Há uma força que atua para despertar o feminino nas mulheres, um modelo arquetípico do qual não há escapatória, que aqui represento pela deusa Inana, deusa Suméria, a primeira das primeiras, a Grande-mãe. Essa potência nasce com a mulher, e a impulsiona durante toda a vida, até que chegue o dia em que ela seja humanizada em cada mulher, tornada amor, uma mulher sábia, iniciada, que está disponível para servir os aspectos luminosos e sombrios de sua própria profundeza, assim como os da deusa. O poder de Inana não é para ser assimilado como deusa, ou seja, que a força atue nela como um Ser, mas, para despertar o Ser individual, humano divinizado que há em cada mulher, que não acontece como busca de um ideal, mas como resultado das vivências individualizadas. No homem essa potência impulsiona sua anima. Mas é na mulher, a representante do feminino que o movimento é mais potente. Vamos conhecer o impulso que há dentro de cada mulher.
Inana é o modelo de totalidade do feminino, que vai além do aspecto maternal. Combina céu e terra, matéria e espírito, recipiente e luz. Ligada aos grãos, aos silos, é responsável pela fertilidade e pela prosperidade. Como rainha do céu e esposa do antigo sol, é considerada a deusa da estrela da manhã e do entardecer, portanto a que desperta a vida e a faz dormir, a atividade e repouso. Ela representa as regiões limítrofes em nós, com suas energias impossíveis de conter, as quais não se pode ter certeza ou segurança, não estáveis por longo tempo, sempre clamando pelo novo.
Ela reclama o eu: os princípios ordenadores do Ser, as potências, talentos e ritos do mundo civilizado e superior. Enquanto juíza, congrega, chama as forças boas e más para decretar o destino, tripudiando sobre o transgressor, é a força que julga, para que a mudança ocorra.
Como rainha da terra ela derrama a realeza sobre o mortal, o acolhe. Ao consorte ela dá o trono, o cetro, assessores, o báculo e a coroa, bem como a promessa de boas colheitas, juntamente com as alegrias de sua cama.
Inana também é a deusa da guerra, a batalha é a dança de Inana. Dotada de instintos selvagens, ataca como tempestade agressiva, mostrando um rosto assustador e um coração feroz. Ela canta: O céu é meu, a terra é minha. Eu sou uma guerreira. Haverá um deus que possa enfrentar-me?
É de modo apaixonado que ela representa a deusa do amor sexual, cantando canções de êxtase, enquanto se enfeita e fala do desejo e das delícias de fazer amor, atraindo seu amado para seu colo sagrado, e com isso o arrebata, simplesmente porque quer o amado, o deseja, mas também o destrói, só para depois sofrer e compor canções de lamentação. É seu momento “receptividade ativa”, clama pelo preenchimento do corpo.
Como se não bastasse, essa força também propicia a cura, é a fonte de vida, assim como a desencadeadora das emoções, a que inferniza, insulta, venera; deprime, se magoa, assim como se alegra e se exulta logo em seguida; se apavora, se deslumbra, treme de susto. Tudo isso está sob o domínio de Inana em nós. Acrescente-se a isso: a paixão, o ciúmes, o ressentimento, a ambição, o exibicionismo, a generosidade.
Segundo o mito é condicionada pela ligação com o pai, mas tem uma ligação próxima e alegre com a mãe, embora Inana não seja de fato maternal, se encontrando na região limiar, entre a maternidade e a virgindade, entre a fecundidade e a animalidade. Não representa a esposa doméstica, a mãe estabilizada. A deusa mantém sua independência e magnetismo como amante, jovem, esposa e viúva. Não é fácil para a mulher ter que ser somente a casada.
Essa força arquetípica, encontra-se profundamente enraizada no substrato patriarcal, e ainda assim da perspectiva do patriarcado a chamam de volúvel, pouco confiável, a causadora de sofrimentos nos consortes. E por esse julgamento é que o patriarcado se volta contra ela, a insulta tentando usurpar-lhe o poder, e por esse motivo que a deusa atuando na mulher, como filha do patriarcado, a faz constantemente buscar um lar para reencontrar esse poder roubado.
O poder que Inana tem, proveniente do mundo superior foi dessacralizado, e suas qualidades assumidas por divindades masculinas, e é por isso que as deusas posteriores, como as gregas, foram engolidas por seus pais, restando às deusas apenas determinados aspectos de poder, fazendo com que muitos dos poderes antes apresentados pela deusa perdessem a conexão com a vida da mulher: o feminino apaixonadamente erótico e lúdico, o feminino multifacetado dotado de vontade própria, ambicioso, real.
Desde a usurpação, as mulheres têm vivido apenas na periferia, em funções fortemente limitadas, subordinadas a homens, posição social, filhos, ocultando sua necessidade de poder e paixão, numa falsa segurança.
O que se tornou comportamento coletivamente aceitável para as mulheres, perdeu a conexão com o sagrado, enquanto a estatura da deusa era reduzida. Obrigada a disciplinar as emoções, principalmente as ligadas ao desejo sexual, a energia vital das mulheres foi comprimida. Pela repressão, a alegria do feminino foi rebaixada, como mera frivolidade; sua sensualidade alegre foi diminuída como coisa de prostituta, ou então sentimentalizada e maternalizada; sua vitalidade foi curvada sob o peso das obrigações e da obediência. A força feminina das paixões tornou-se apenas sonhos e ideais.
Podemos dizer que os homens atuais herdaram a ideia, e que não foram os responsáveis pelo rebaixamento da mulher. A questão é que o lugar de grandeza, heroísmo e poder, apesar de cansativo, é lugar de domínio, e ao contrário do que eles dizem, poucos estão facilitando o retorno ao cetro e a coroa que já lhes pertencia.
Mas olha que lindo, para compensar temos o dia da mulher, e como prêmio por termos cedido nosso poder recebemos presentinhos, flores, bombons e se nos comportamos bem durante o ano, ainda nos levam para jantar. Devemos agradecer?
O que eles não sabem é que tem outra força feminina atuando para retomar ao que é seu por direito, enrolada como uma serpente no lugar mais profundo do Ser de uma mulher. E essa não tem a diplomacia de Inana, se é que vocês me entendem. E uma hora ou outra, ela desperta.
Luciana Sereniski
CRP 12/06912