Dia da Mulher: se querem nos presentear, devolvam nosso poder
12:17Há uma força que atua para despertar o feminino nas mulheres, um modelo arquetípico do qual não há escapatória, que aqui represento pela deusa Inana, deusa Suméria, a primeira das primeiras, a Grande-mãe. Essa potência nasce com a mulher, e a impulsiona durante toda a vida, até que chegue o dia em que ela seja humanizada em cada mulher, tornada amor, uma mulher sábia, iniciada, que está disponível para servir os aspectos luminosos e sombrios de sua própria profundeza, assim como os da deusa. O poder de Inana não é para ser assimilado como deusa, ou seja, que a força atue nela como um Ser, mas, para despertar o Ser individual, humano divinizado que há em cada mulher, que não acontece como busca de um ideal, mas como resultado das vivências individualizadas. No homem essa potência impulsiona sua anima. Mas é na mulher, a representante do feminino que o movimento é mais potente. Vamos conhecer o impulso que há dentro de cada mulher.
Inana é o modelo de totalidade do feminino, que vai além do aspecto maternal. Combina céu e terra, matéria e espírito, recipiente e luz. Ligada aos grãos, aos silos, é responsável pela fertilidade e pela prosperidade. Como rainha do céu e esposa do antigo sol, é considerada a deusa da estrela da manhã e do entardecer, portanto a que desperta a vida e a faz dormir, a atividade e repouso. Ela representa as regiões limítrofes em nós, com suas energias impossíveis de conter, as quais não se pode ter certeza ou segurança, não estáveis por longo tempo, sempre clamando pelo novo.
Ela reclama o eu: os princípios ordenadores do Ser, as potências, talentos e ritos do mundo civilizado e superior. Enquanto juíza, congrega, chama as forças boas e más para decretar o destino, tripudiando sobre o transgressor, é a força que julga, para que a mudança ocorra.
Como rainha da terra ela derrama a realeza sobre o mortal, o acolhe. Ao consorte ela dá o trono, o cetro, assessores, o báculo e a coroa, bem como a promessa de boas colheitas, juntamente com as alegrias de sua cama.
Inana também é a deusa da guerra, a batalha é a dança de Inana. Dotada de instintos selvagens, ataca como tempestade agressiva, mostrando um rosto assustador e um coração feroz. Ela canta: O céu é meu, a terra é minha. Eu sou uma guerreira. Haverá um deus que possa enfrentar-me?
É de modo apaixonado que ela representa a deusa do amor sexual, cantando canções de êxtase, enquanto se enfeita e fala do desejo e das delícias de fazer amor, atraindo seu amado para seu colo sagrado, e com isso o arrebata, simplesmente porque quer o amado, o deseja, mas também o destrói, só para depois sofrer e compor canções de lamentação. É seu momento “receptividade ativa”, clama pelo preenchimento do corpo.
Como se não bastasse, essa força também propicia a cura, é a fonte de vida, assim como a desencadeadora das emoções, a que inferniza, insulta, venera; deprime, se magoa, assim como se alegra e se exulta logo em seguida; se apavora, se deslumbra, treme de susto. Tudo isso está sob o domínio de Inana em nós. Acrescente-se a isso: a paixão, o ciúmes, o ressentimento, a ambição, o exibicionismo, a generosidade.
Segundo o mito é condicionada pela ligação com o pai, mas tem uma ligação próxima e alegre com a mãe, embora Inana não seja de fato maternal, se encontrando na região limiar, entre a maternidade e a virgindade, entre a fecundidade e a animalidade. Não representa a esposa doméstica, a mãe estabilizada. A deusa mantém sua independência e magnetismo como amante, jovem, esposa e viúva. Não é fácil para a mulher ter que ser somente a casada.
Essa força arquetípica, encontra-se profundamente enraizada no substrato patriarcal, e ainda assim da perspectiva do patriarcado a chamam de volúvel, pouco confiável, a causadora de sofrimentos nos consortes. E por esse julgamento é que o patriarcado se volta contra ela, a insulta tentando usurpar-lhe o poder, e por esse motivo que a deusa atuando na mulher, como filha do patriarcado, a faz constantemente buscar um lar para reencontrar esse poder roubado.
O poder que Inana tem, proveniente do mundo superior foi dessacralizado, e suas qualidades assumidas por divindades masculinas, e é por isso que as deusas posteriores, como as gregas, foram engolidas por seus pais, restando às deusas apenas determinados aspectos de poder, fazendo com que muitos dos poderes antes apresentados pela deusa perdessem a conexão com a vida da mulher: o feminino apaixonadamente erótico e lúdico, o feminino multifacetado dotado de vontade própria, ambicioso, real.
Desde a usurpação, as mulheres têm vivido apenas na periferia, em funções fortemente limitadas, subordinadas a homens, posição social, filhos, ocultando sua necessidade de poder e paixão, numa falsa segurança.
O que se tornou comportamento coletivamente aceitável para as mulheres, perdeu a conexão com o sagrado, enquanto a estatura da deusa era reduzida. Obrigada a disciplinar as emoções, principalmente as ligadas ao desejo sexual, a energia vital das mulheres foi comprimida. Pela repressão, a alegria do feminino foi rebaixada, como mera frivolidade; sua sensualidade alegre foi diminuída como coisa de prostituta, ou então sentimentalizada e maternalizada; sua vitalidade foi curvada sob o peso das obrigações e da obediência. A força feminina das paixões tornou-se apenas sonhos e ideais.
Podemos dizer que os homens atuais herdaram a ideia, e que não foram os responsáveis pelo rebaixamento da mulher. A questão é que o lugar de grandeza, heroísmo e poder, apesar de cansativo, é lugar de domínio, e ao contrário do que eles dizem, poucos estão facilitando o retorno ao cetro e a coroa que já lhes pertencia.
Mas olha que lindo, para compensar temos o dia da mulher, e como prêmio por termos cedido nosso poder recebemos presentinhos, flores, bombons e se nos comportamos bem durante o ano, ainda nos levam para jantar. Devemos agradecer?
O que eles não sabem é que tem outra força feminina atuando para retomar ao que é seu por direito, enrolada como uma serpente no lugar mais profundo do Ser de uma mulher. E essa não tem a diplomacia de Inana, se é que vocês me entendem. E uma hora ou outra, ela desperta.
Luciana Sereniski
CRP 12/06912
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