O que diz Jung sobre Religião

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Jung jamais fez afirmações metafísicas sobre a existência de Deus, mas viu na religião uma forma de diálogo do Ego com o Self.

Qual a visão de Jung do fenômeno religioso? Será que ele afirma existir um Deus transcendente? Ou parte de um ponto de vista materialista agnóstico, no que se refere às manifestações do Sagrado?

Existe uma curiosidade muito frequente a respeito do interesse de Jung pela religião. Adiantando a pergunta acima, Jung não fez afirmações metafísicas a respeito de Deus, isto é, não afirmava, nem negava a existência de Deus.

Jung procurou as bases da religião na psique, nos seus aspectos mais profundos e inconscientes. Encontrou na vida psicológica arquetípica os fundamentos do comportamento religioso. Numa carta publicada em “A vida simbólica”, o próprio Jung respondeu:

“Encontramos muitas representações de Deus, mas o original ninguém consegue encontrar. Para mim não há dúvida de que o original se esconde atrás de nossas representações, mas ele nos é inacessível. Jamais estaríamos em condições de perceber o original porque deveria ser antes de mais nada traduzido em categorias psíquicas para tornar-se de alguma forma perceptível. E presumo que a diferença entre o ser humano e o criador de todas as coisas é incomensuravelmente maior que entre um ser humano e uma barata. Por que seríamos tão imodestos a ponto de supor que poderíamos encerrar um ser universal dentro dos estreitos limites da nossa linguagem?”

O mestre da psicologia profunda evitava ultrapassar os limites da sua ciência. Não ousava sair do seu objeto de estudo, que é a psique e suas leis e formas de funcionamento. Tal seriedade garantiu a ele a possibilidade de ser o fundador de um novo paradigma que fecundou as bases seguras de vários ramos da psicologia científica, entre elas a psicologia analítica, a psicologia arquetípica, a psicologia simbólica e também a psicologia transpessoal.

Jung abriu um vasto campo de pesquisa, no que se refere às bases psíquicas do ser humano e buscou a gênese de sua complexidade. Ampliou o entendimento das relações do consciente com o inconsciente, observando empiricamente, por intermédio de sua prática clínica, as manifestações dos arquétipos, aquilatando de forma científica a profunda e determinante influência deles na produção dos sonhos e de todas as formas de comportamento, religiosos ou não. Também observou as produções artísticas, folclóricas e religiosas pelo prisma arquetípico. Assim postulou que os arquétipos são os responsáveis pelas produções das imagens religiosas, tanto individuais quanto coletivas.

A curiosidade por Jung nos remete a um dos seus conceitos mais fascinantes: o inconsciente coletivo. Trata-se do fundamento da vida psíquica, da base que molda todo o comportamento religioso. Para Jung, e depois para seus seguidores, a consciência se desenvolve por influência dos arquétipos. Cada arquétipo corresponde a um tipo de consciência específica. As imagens religiosas são produtos dos arquétipos. Ex. As imagens das madonas seriam imagens arquetípicas referentes ao arquétipo da Grande Mãe. Em cada época ou cultura os arquétipos se expressam criando imagens que são adoradas, divinizadas e cultuadas em ritos e cultos.

A pesquisa de Jung foi marcada pela sua profunda intuição aliada ao seu já citado rigor científico. Seu interesse pelo religioso o distanciou de Freud, que também escreveu textos de grande relevância sobre religião. Porém, discordavam no que tange aos mistérios da fé.

Para Freud, a religião tinha seus dias contados(Futuro de uma ilusão). Ele entendia a religião como um arcaico mecanismo de defesa infantil do homem diante da angústia de um Cosmos indiferente a ele. O pai da psicanálise entendia que, conforme a ciência avançasse, no tempo e na história, e o homem fosse adquirindo o conhecimento necessário para a resolução de seus males, acabaria então, abdicando da ilusão que é a religião. Venceria assim as suas dificuldades pelo princípio da realidade, de mãos dadas com a ciência, a única forma segura de evolução da consciência.

Como vimos, o novo paradigma científico desenvolvido por Jung na psicologia é simbólico e arquetípico. A psicologia profunda busca, tanto na religião oriental, quanto na ocidental, novos níveis de consciência, trazidos pelos arquétipos rumo a consciência da totalidade.

Podemos assim, ao estudar a Bíblia pelo prisma simbólico, observar o desenvolvimento do dinamismo da consciência patriarcal, como também o dinamismo da consciência pós-patriarcal, expressa no Novo Testamento. Assim, Jesus encarna em si uma nova consciência, que a psicologia simbólica denominou de alteridade. Podemos chamá-la de consciência do Outro, ou consciência da compaixão que integra as polaridades em si mesma.

Portanto, as religiões falam da própria psique, são expressões dos arquétipos, que por intermédio de seus símbolos correspondentes expressam e propiciam ao homem novos saltos de consciência.

Diria Jung: “A psique não oferece um ponto de vista objetivo exterior a ela”, como muitas vezes nos fazem acreditar o dogmatismo e o fundamentalismo religiosos. Cabe ao homem buscar em sua interioridade os caminhos que o levam a estados de consciência: Atma, Nirvana, Tao ou Reino de Deus, e assim descobrir o amor que é a expressão mais clara da Divindade dentro de nós.

Na prática clínica se observa um grande distanciamento da maioria dos pacientes em relação a fé cristã. E não só no consultório, mas na sociedade como um todo, há um profundo desconhecimento tanto da mensagem de Cristo quanto da Igreja de uma forma geral. Houve uma distorção da mensagem original de Jesus. Por isso muitas pessoas entendem as igrejas como uma máquina de produzir culpa e acabam se distanciando de suas raízes espirituais sem conhece-las em sua profundidade e beleza. Acabam importando outras religiões, também com seus exageros e pré-conceitos. Assim religiões pessoais são estruturadas com pouca profundidade, com símbolos chineses, japoneses, africanos, fazendo parte do mesmo altar cristão.

Em várias ocasiões, Jung deixou claro a sua opinião de que importar religiões de outras tradições e substituí-las pela original era um perigo psicológico. Para ele tratava de um desenraizamento que colocava a psique em risco de dissociação. Tratava-se também do velho hábito de valorizar mais o que vem de fora. O importado é sempre melhor, dizia ele.

Tal como Freud, Jung fez em diversas ocasiões críticas à religião infantilizada, isto é, defensiva, que projeta nas figuras arquetípicas de pai e mãe as divindades protetoras, denunciando assim a ação dos mecanismos de defesa arcaicos, relacionados aos medos infantis que vivem na interioridade do homem racional.

Mas diferentemente de Freud, Jung encontrou nas religiões seus aspectos positivos. Observou metáforas nelas contidas da ligação do ego com o Self(que também pode ser chamado de Arquétipo Central ou, se preferirmos, de arquétipo regente, por ser o arquétipo responsável por toda a organização dos demais arquétipos que estruturam a personalidade). Para ele a figura de Cristo(centro da mandala cristã) representava simbolicamente o Arquétipo Central. Por este prisma, a mensagem de Jesus é a expressão do Self. O evangelho nos diz que o verbo se fez carne. Não foi a voz do Ego, mas a voz do Self que se expressou no messias Cristão. Jesus, portanto, falou da mais profunda intimidade de seu Ser. Ao escutarmos sua mensagem de coração aberto nos religamos ao nosso próprio Self e nos distanciamos do ponto de vista do ego.

Jung resgatou o sentido do sentimento religioso para o homem moderno, que não se convence com uma fé dissociada da racionalidade.

Marie-Louise von Franz, uma grande colaboradora de Jung, comenta: “Jung preferiu servir ao centro último, mais íntimo, à quantidade desconhecida das profundezas da psique, a que deu o nome de Self, e que hoje se manifesta nos seres humanos como a imagem de um ‘grande ser humano que tudo abarca’, uma ‘natureza divina’, que difere do ego e que só pode ser encontrada no interior da pessoa, quando já não pode ser projetada.

Jung desenvolveu como poucos o entendimento psicológico dos mistérios do sagrado.

Ao dizer que a divindade habita dentro do ser humano, está dizendo que existe um Outro dentro do sujeito que não é o ego, mas que o sustenta do berço ao túmulo em todo processo de individuação. Esse outro podemos entender como o Self, o Grande Eu, o Cristo, no caso da religião Cristã.

Jung viu na religião, portanto, o diálogo, do ego com o Self de uma forma mais protegida. O inconsciente tem o seu aspecto terrível e ameaçador, a religião é uma forma de lidar com essa força transpessoal inconsciente de modo mais seguro. Esse processo de “religação”, ou de comunicação do ego com o Self, podemos chamá-lo de “processo de individuação”.

Na prática clínica, toda a teoria fica bem mais clara. Não é difícil observar no centro da personalidade do indivíduo imaturo um vínculo de dependência psicológica, geralmente simbiótico. O objeto que recebe a projeção da divindade passa a ter a força de um deus na sua psique. O individuo torna-se um satélite desse deus. Teme-o, deseja-o, cultua-o e se submete à ele. Além de render-lhe sacrifícios e rituais. Esse deus pode ser o dinheiro, a própria fama, um homem ou uma mulher idealizada, a lei, pode ser um parente divinizado, ou o próprio ego que se aloja no seu centro, isto é, no lugar do Self.

O fato é que o centro do indivíduo imaturo é sempre representado por uma criatura ou coisa que o subjuga e domina. Assim como a criança diviniza(necessariamente) os pais no desenvolvimento de sua personalidade, o adulto imaturo cria vínculos de profunda dependência com objetos externos que cultua como deuses e a eles fica fixado, às vezes por quase toda existência. É a criança interna ferida e negligenciada, que vive inconscientemente no adulto, que juntamente com os mecanismos de defesa inconscientes , distancia o indivíduo do sentimento religioso autêntico.

São as chamadas fixações narcísicas. No seu aspecto criativo, a verdadeira religião, assim como a psicoterapia, promove a transcendência dos vínculos de dependência infantil que impedem a relação com o Self.

A leitura simbólica do Novo Testamento conduz o indivíduo à ruptura dos vínculos que os distanciam do seu Self e o mantêm cativo à neurose quase sempre inconsciente. A religião pode ser uma grande via de encontro com o Self, na medida em que expõe a sombra ao ego e o convida a abraçar a sua cruz(conflito) rumo ao Self.

É, portanto, o reconhecimento do centro divino e a sua relação com ele a proposta de Jung. Conhecer a própria tradição espiritual é conhecer mais sobre si mesmo. Da mesma forma que se diferenciar de falsos deuses que servimos muitas vezes inconscientemente. O Self parece pedir reconhecimento e busca a diferenciação do sujeito de tudo que é exterior a ele. Encontramos no Evangelho:

“O que ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e o que ama mais o filho ou filha que a mim não é digno de mim. O que não tomar a sua cruz e me seguir não é digno de mim. O que se prende à sua vida perdê-la-á; e o que perder a sua vida por meu amor, achá-la-á. (Mateus)

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